NYTimes e o peopleware do jornalismo

O peopleware do jornalismo ainda é caro, escasso e necessário. A internet mudou muita coisa, mas não a nossa necessidade de ter pessoas que saibam buscar, selecionar e interpretar os fatos com sensibilidade. Que transformem confusão em clareza.

Essa é a principal mensagem que fica ao assistir a PageOne: Inside The New York Times, atualmente um dos principais documentários sobre a área de mídia, dirigido por Andrew Rossi e destaque no Sundance Festival deste ano.

Inédito no Brasil, Page One se propõe a mostrar a rotina da equipe do NYTimes que cobre a área de mídia. Como pano de fundo, revela as transformações do mercado de jornais impressos.

Rossi nos mostra que pessoas que tenham habilidade para contar uma boa história, com sensibilidade e disposição, ainda são raras, apesar das plataformas de distribuição e produção de conteúdo estarem mais acessíveis e baratas.

Essa necessidade e importância se sobressai num depoimento de Jimmy Wales, criador da Wikipedia. Quando questionado sobre o fim da importância dos jornalistas, ele responde que sempre será necessário o profissional de informação que vai ao front de guerra, faz plantão em porta de hospital e no congresso, fica focado o dia inteiro num assunto. Enfim, que nos dê acesso a informações que são incomuns para qualquer pessoa.

O documentário começa com um tom alarmista que prossegue até o final. Abre com notícias do fechamento dos jornais Seattle Post-Intelligencer e Denver’s Rocky Mountain News, em 2009, além da queda da receita de publicidade na mídia impressa nos EUA.

Para entender esse tom alarmista de Page One, é preciso analisar o contexto em que foi gravado e produzido. Rossi teve a ideia de elaborar o documentário após a leitura de um artigo da Atlantic, o qual alertava que o destino do NYTimes seria sombrio.

As gravações foram feitas no ano de 2010, época em que o futuro dos jornais era questionado de forma acelerada e o Wikileaks tinha vazado o vídeo “Collateral Murder“, o qual revelava um grave erro do exército americano e que resultou na morte de civis no Iraque, inclusive dois jornalistas da Reuters.

O caso colocou em xeque o papel das empresas de jornalismo no atual ecossistema de informação em que existem players como Facebook e Google, além de projetos como o Wikileaks.

Page One coloca que a atual questão dos jornais impressos não é simplesmente financeira, mas muito mais de relevância e prestígio. Os jornais ainda conseguem pautar as principais discussões como faziam há 20, 30 anos?

Rossi usa uma narrativa não-linear para mostrar tudo isso, entremeada com recortes de depoimentos de gurus das novas mídias, como Jeff Jarvis, Nick Denton e Clay Shirky.

Por não seguir uma ordem linear, a narrativa acaba gerando algumas situações. Protagonista do documentário, o jornalista do NYTimes Brian Stelter estava fazendo regime durante as filmagens. Daí durante uma parte do documentário ele aparece magro, posteriormente gordo e depois magro novamente.

Apesar de tentar gerar um debate sobre o jornalismo, Page One destaca-se mesmo como o retrato mais recente do modus operandi do NYTimes. Não é à toa que o documentário foi rotulado como um infocomercial do NYTimes, voltado para os que são viciados no jornal, até hoje um dos símbolos do jornalismo.

Em alguns momentos, Page One lembra outro documentário – The September Issue, de 2009, que mostra os bastidores da revista Vogue e a carreira da editora Anna Wintour.

Em Page One, Rossi atua como um “documentarista embedded”, integrado ao cotidiano da redação. O cineasta teve um tipo de acesso ao dia a dia do NYTimes nunca registrado anteriormente em vídeo.

Semelhante a outros grandes jornais, estão lá o repórter novato, o veterano (já colunista), o repórter que sonha em cobrir uma guerra e o editor estressado com o fechamento das matérias.

David Carr, veterano colunista de mídia, é o foco das atenções. Sua casa é mostrada e o seu vício passado em crack, cocaína e álcool é abordado. Carr é retratado como um jornalista veterano, turrão, que veste a camisa da empresa e faz um contraponto às notícias mais alarmistas de que o “jornalismo morreu”.

Por sua vez, Brian Stelter, jovem repórter da editoria de mídia, se sai como o “jornalista da geração digital” – multitarefa e que faz uso dos recentes utilitários de comunicação (Twitter, iPad, Facebook, blogs).

Rossi, às vezes, sugere um conflito entre gerações do jornalismo ao registrar uma frase de Carr que diz que Stelter, na realidade, não é um ser humano, mas um robô montado para destruí-lo. Tudo brincadeira, na verdade.

Mais para frente no documentário, o mesmo Rossi nos mostra que o básico do jornalismo continua, de geração a geração – a busca por uma boa história e o que seja mais próximo da verdade.

Em Page One, detalhes do cotidiano do NYTimes são explicados como se fosse uma aula de jornalismo – você aprende que as reuniões de pauta começam às 10h30 – é o primeiro momento em que se decide o que vai para capa do dia seguinte -, além de algumas gírias da redação – “swing” é quando uma matéria vai para a capa da edição nacional e fica apenas nas internas da edição local, que circula somente em NY.

Apesar de restringir o escopo, utilizar o NYTimes como referência para o questionamento da relevância e do prestígio dos jornais não é de todo mal. Rossi acaba por mostrar um movimento atual no jornalismo e que também está presente no jornal novaiorquino – o jornalista que não precisa construir a sua reputação necessariamente dentro de uma redação.

Reputação é um dos ativos mais importantes de um jornalista. Stelter construiu a sua reputação e marca pessoal nas redes sociais e num blog – o TV Newser. Por causa do blog e seu respeito nas redes, em 2007, foi convidado para trabalhar no NYTimes. Ou seja, antes de ir para a redação, ele já tinha reputação, marca e audiência próprias.

Além disso, em um trecho do documentário, Carr conta que o Twitter deu aos jornalistas uma noção sobre como as pessoas estão reagindo às notícias do dia. É como ouvir a uma voz coletiva.

Page One deixa evidente que a área de jornalismo passa pelo mesmo que outras indústrias – uma fase de disrupção e intersecção de tecnologias, em que os protagonistas de uma indústria devem entrar numa fase de autoanálise para entender realmente o que está acontecendo.

A área de jornalismo não está isolada do que está ocorrendo em outros mercados. Recentemente, a indústria farmacêutica passou por isso na medida em que a biotecnologia ganhou mais espaço.

Ou seja, antes de tudo, as empresas de jornalismo estão numa fase de autoconhecimento. O que fazemos de melhor? Qual o nosso papel no atual ecossistema de informação?

Por isso, acredito que sairão melhor posicionadas desse momento as empresas que não confundirem negócio com tecnologia, que redescobrirem a sua competência central, o que fazem melhor e o que pode ser aplicado a diversos mercados e produtos – com sensibilidade e ética, contar boas histórias ao leitor, independentemente da plataforma.

Veja também: Mais um jornal que vai “monetizar” a audiência e não o conteúdo

3 respostas para “NYTimes e o peopleware do jornalismo”.

  1. Bom dia Dória. Onde você viu o documentário?

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    1. Bom dia. O documentário está na iTunes.

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  2. […] do mercado de jornais impressos. Assista ao vídeo em Page One: Inside the New York Times. (Via). Postado em Vídeos. Compartilhe […]

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