Confessionário de um Xoogler

Douglas Edwards não é o nome mais conhecido da Google pelos brasileiros. Contudo, o americano tem uma certa ligação com o Brasil.

Foi ele quem criou o texto da mensagem que sempre aparecia quando o Orkut saía do ar – “Bad, bad server. No donut for you”. O funcionário da Google escreveu a frase como um tributo a um antigo desenho animado do qual ele mal lembrava.

Aliás, Edwards apresenta uma visão bem particular, própria de quem esteve dentro da Google, sobre os motivos de o Orkut não ter deslanchado como um produto internacional (o Orkut tem uma boa popularidade, porém restrita a Brasil e Índia).

Segundo ele, o Orkut não alcançou sucesso global, pois, desde o início, mesmo com a limitação dos convites, apresentou problemas em lidar com o volume de usuários. A plataforma de rede social era lenta. Sua utilização era frustrante.

Apesar disso, poucas melhorias eram feitas. Boa parte do Orkut foi desenvolvido fora da Google pelo engenheiro Orkut Büyükkökten, utilizando ferramentas da Microsoft que não eram usadas pelos engenheiros da empresa de busca. Para os funcionários da Google, era trabalhoso mexer no código do Orkut.

Uma das soluções propostas na época foi a de que o Orkut migrasse para a plataforma de tecnologias utilizadas pela Google e fosse apresentado oficialmente como um projeto do Google Labs.

Contudo, a ideia não foi para frente. Executivos da Google acharam que seria decepcionante ter que receber um convite para testar um projeto. A ideia era que os protótipos do Google Labs fossem abertos a qualquer usuário.

No final das contas, mesmo quando levado para dentro da Google, em 2004, o Orkut permaneceu por um bom tempo como um projeto de “um engenheiro só”.

Além disso, a Google ficou no dilema – associar ou não a sua marca ao Orkut (oficialmente, no início, a plataforma de rede social foi criada por um engenheiro da Google, mas não era propriamente um produto da empresa).

Se desde o início o Orkut tivesse sido associado ao Google e os engenheiros tivessem abraçado melhor o projeto, possivelmente a história das redes sociais teria sido diferente.

Edwards acredita que o Orkut poderia ter se tornado um produto de sucesso global e superado o Facebook, que, na época, também estava engatinhando. O Google+ seria uma lição tardia do que a Google deveria ter feito com o Orkut (modificações rápidas, associação prematura com a marca da Google e identificação clara de que o produto está em beta).

Essas e outras revelações sobre os bastidores da Google estão em I’m Feeling Lucky: The Confessions of Google Employee Number 59 (432 páginas/Editora HMH), escrito por Douglas Edwards (foto abaixo), gerente de marca da Google entre 1999 e 2005.

No livro, Edwards faz um relato detalhado de seus 6 anos junto ao departamento de marketing da Google. O americano foi o 59º funcionário da Google. Ou seja, acompanhou de perto os primeiros passos da empresa de busca.

Durante o período, ele foi a “Voz da Google”, profissional responsável pelos textos e mensagens que acompanhavam os produtos da Google. Hoje, segundo o vocabulário da empresa, Edwards é um Xoogler, “ex-funcionário”.

Em relação a tantos livros que foram publicados sobre a empresa, o de Edwards tem um diferencial – ele dá visibilidade a pessoas que, embora desconhecidas, foram peças-chaves na história da Google.

Uma delas é o engenheiro Urs Holzle, uma das 10 primeiras pessoas da folha de pagamento da Google. O engenheiro foi responsável por desenvolver a arquitetura dos data centers da empresa de busca, capazes de gastar a metade de energia de um data center convencional, algo que se revelou crucial para o sucesso inicial da empresa.

Sempre que pensamos na Google, lembramos do front-end da empresa – interface, simplicidade, logos. No entanto, assim como o Facebook, um dos grandes diferenciais está no back-end. A Google é conhecida por fazer um uso eficiente dos servidores. Enquanto uma empresa convencional usa 10 máquinas para fazer X, a Google utiliza a mesma quantidade para fazer X + Y + Z.

Holzle teve ainda um papel importante no recrutamento do time que deu os primeiros passos da Google. O engenheiro selecionava apenas profissionais que sabiam o mesmo ou mais do que ele. Ao contratar uma pessoa que é melhor do que você em seu time, em um ano você dobra a produtividade de sua equipe, dizia.

A equipe de Holzle foi responsável por reescrever todo o código inicial do Google, que era mal elaborado e cheio de erros. Como programadores, Larry Page e Sergey Brin, cofundadores da Google, eram fracos. Eles sabiam quando usar uma linguagem de programação, mas não conseguiam escrevê-la corretamente (uma boa lição para empresas que, de forma equivocada, pensam que somente em razão de um funcionário ser um bom programador, ele necessariamente será um bom gestor ou empreendedor).

Enfim, em Confessions of Google Employee, Edwards acaba desmitificando e, ao mesmo tempo, reforçando alguns mitos em torno da Google.

Por exemplo, para o público externo, crowdsourcing era “inteligência coletiva”. Internamente, na Google, era “redução de custos”. Sempre quando a empresa pedia aos usuários que ajudassem na tradução de uma página, a intenção era cortar gastos com tradutores (tática adotada pelo Facebook anos depois).

Segundo Edwards, para o monossilábico Page, a web era muito mais que colecionar amigos online ou ficar compartilhando coisas a esmo o dia inteiro. Tanto que, no pano da manga, o executivo sempre tinha várias visões a respeito do futuro da Google:

Com base nos dados que a empresa coleta, a Google se transformaria na maior provedora de pesquisa de mercado e business intelligence.

Ou ainda. A empresa se tornaria uma fornecedora verticalizada de serviços e infraestrutura de comunicação (Essa última visão, não podemos negar, já está operacionalizada. Vide o último post aqui, no blog – Google: mais próxima de uma empresa de telecom).

Uma das principais preocupações dos executivos da Google era com o recrutamento. No início e por algum tempo, a empresa não estava interessada em currículos, mas em pessoas, principalmente naquelas capazes de “energizar” uma equipe, perfil importante quando se está montando uma empresa ou projeto.

A Google era cheia de pessoas da Universidade de Stanford, porém isso acontecia sobretudo por uma questão de mera logística. Quando os cofundadores precisavam contratar alguém, pensavam logo em algum ex-colega de classe.

Edwards lembra de ter trabalhado com pessoas que não tinham nenhum título acadêmico, mas em compensação possuíam habilidades para resolver problemas e motivar equipes. ”Contrate pessoas que têm mais habilidade do que experiência”, era um mantra do RH da Google em seu início.

Semelhante a diversas empresas atualmente no Vale do Silício, na Google, o salário não era dos melhores. Você poderia ganhar bem mais trabalhando em empresas fora da região. A Google compensava a diferença mais com qualidade do que quantidade – participação nas ações, trabalhar ao lado de “caras geniais”, aprendizado, fazer o seu próprio horário de trabalho e comer uma das melhores comidas da região.

Edwards cita o  caso de um colega que recebeu um convite para trabalhar em outra empresa, mas resolveu ficar na Google por causa da comida servida no refeitório.

O próprio Edwards foi vítima da cultura anticorporativa da empresa durante a sua entrevista de admissão. Brin era o responsável pela entrevista.

Em certo momento, o cofundador da Google saiu da sala e deu 5 minutos para que o Edwards pensasse num assunto complicado que ele não conhecesse. Na volta, o candidato teria que explicar o assunto para Brin. A intenção era avaliar não apenas a capacidade de comunicação e o interesse do candidato em um assunto, mas também ganhar tempo. Caso o candidato não fosse escolhido, pelo menos Brin ganhava a possibilidade de aprender um assunto novo.

Na cultura corporativa da Google, experimentar é mais poderoso do que simplesmente falar. Um protótipo é capaz de dar mais respostas do que discussões teóricas.

Nas reuniões da Google você tinha que vir armado de dados e se possível protótipos, caso contrário as suas ideias caíam. Aliás, decisões nunca eram adiadas. Se você faltasse a uma reunião, a decisão era tomada assim mesmo, lembra Edwards.

De certa forma, essa mentalidade está condensada nas “Regras de Larry Page”, compiladas pelo ex-funcionário da Google e que resumem parte da cultura da empresa.

1) Não delegue. Faça tudo o que puder para ir mais rápido.
2) Não seja um burocrata. Não fique no caminho se você não está adicionando valor. Deixe as pessoas trabalharem.
3) Ideias são mais importante que idade. Somente por que uma pessoa é mais nova que você, não é motivo para não merecer respeito e cooperação.
4) A pior coisa que você pode fazer é impedir alguém de realizar algo dizendo não. Caso faça isso, ajude-a a encontrar a melhor forma de fazer esse algo.

Outras atitudes e elementos do DNA da Google já estavam lá desde 1999. Eles nos ajudam a entender diversas decisões atuais da empresa.

Cortar intermediários e ganhar autonomia ao máximo
Empresas adquirem outras empresas por diversos motivos. Contudo, para a Google as aquisições têm, em sua maioria, como foco cortar intermediários.

Tratar o open e o grátis como tática de mercado
Em mercados onde a Google não domina, ela utiliza o open como forma de ganhar participação.

Conquistar os usuários pela qualidade e não pelo marketing
Na cultura da Google, se não podemos conquistar os usuários pela qualidade e excelência das tecnologias, de nada adiantará lançar um produto. Para Page, marketing sempre foi um gasto desnecessário. Brin nunca disfarçou a sua antipatia pelas agências (por ironia do destino, a publicidade se tornaria a principal vaca leiteira da Google).

Permitir que os produtos nasçam de baixo para cima (ser product-driven)
Na Google, a maioria dos produtos não nasce no departamento de marketing, mas sim entre os engenheiros. Depois é que os produtos são levados para a diretoria. Enfim, a Google é uma empresa “product-driven” e não “marketing-driven”.

Apoiar as decisões em dados (ser data-driven)
Além de “product driven”, a Google é, antes de tudo, uma empresa guiada e centrada em dados. De nada adianta, você chegar em uma reunião com uma “ideia genial” se você não tem dados para sustentá-la. Dados sempre foram supervalorizados na Google.

O relato de Edwards sobre como a Google reagiu a diversos momentos históricos, como o 11 de setembro, rende uma das partes mais interessantes de Confessions of Google Employee.

A Google parou para assistir na TV o que estava acontecendo. Edwards lembra de ver um Brin agitado, preocupado em como a empresa de busca poderia ajudar os cidadãos americanos naquele momento.

Alguns funcionários correram para o computador a fim de enviar e-mails e saber se os seus colegas de escritório em Nova York estavam bem. A resposta foi positiva.

O cofundador da Google emitiu imediatamente uma ordem para que a Google oferecesse hospedagem para os sites de notícias e organizações (ex: Cruz Vermelha) que estavam tendo problemas com o volume repentino de usuários.

A maioria dos sites de notícias não aceitou a ajuda. No entanto, em razão de ser um dos poucos sites que estava aguentando a demanda repentina (lembra dos data centers eficientes?), o Google começou a direcionar os usuários para versões em cache dos principais sites de notícias. A página inicial do buscador (imagem abaixo) se tornou um agregador de informações sobre o ataque.

Usuários enviavam links com sugestões de notícias e blogs que relatavam o que se passava em Nova York. Segundo Edwards, no dia, ninguém ousou questionar se isso iria contra o conceito do Google de nunca se tornar um portal.

Era o que precisava ser feito naquele momento.

Uma preocupação posterior dos fundadores da Google era a de que o buscador tivesse sido utilizado pelos terroristas responsáveis pelo ataque às torres gêmeas. A empresa abriu a possibilidade de entrar em contato com o FBI. E Edwards fez parte de uma equipe interna responsável por fazer uma varredura nos logs de busca a fim de encontrar algo suspeito. Nada relevante foi localizado na época.

Logo após o 11 de setembro, a Google passou a tomar diversas precauções. Somente as viagens internacionais mais imprescindíveis eram realizadas. Lançamentos de versões locais de produtos foram cancelados.

Qualquer email com ameaças incisivas à empresa ou aos seus funcionários era logo analisado e visto com cautela. A Google chegou a acionar a polícia quando um usuário ameaçou invadir a sede da empresa, na Califórnia.

Um aspecto que fica evidente na leitura de Confessions of Google Employee é que, no início, os principais obstáculos da Google eram as outras empresas – Altavista, Ask Jeeves, Overture.

Depois, a própria Google passou a ser o seu principal desafio. A empresa teve que superar a “síndrome de deixar de ser uma startup”.

O sigilo sempre foi uma constante na Google, mas, após a abertura de capital (IPO) em 2004, a informação deixou de circular livremente pela empresa. Setores passaram a se falar menos e a competir cada vez mais por recursos. A camaradagem deu lugar a um relacionamento mais profissional e distante. O próprio recrutamento começou a dar mais valor a currículos. E os processos de lançamentos de produtos se tornaram mais burocráticos. Além de aprender a delegar tarefas, Page e Brin tiveram que compartilhar a sua visão sobre o futuro da Google com os outros.

Não foi uma mudança fácil e indolor. Teve alguns efeitos colaterais, como a própria saída de Edwards da empresa, em 2005. O executivo acredita que o seu trabalho não tinha mais espaço.

Em Confessions of Google Employee, o ex-funcionário adota uma postura honesta – chega a admitir erros. Edwards sempre foi contra os logos comemorativos no sistema de busca da Google (doodles). Algo que, no final das contas, se mostrou um grande sucesso e “marca registrada” da empresa de busca. Segundo ele, tradicionalmente você não pode modificar um logo de uma empresa tantas vezes.

Confessions of Google Employee Number 59 não é o livro mais completo sobre a história da Google, mas é o que melhor mostra o quanto as culturas da Google e das startups estão ligadas. Por ter participado do início da Google, Edwards acaba retratando os prós e contras da vida de trabalho em uma startup – caos organizado, horários flexíveis de trabalho, as discussões por email, decisões tomadas no meio da madrugada, genialidade misturada com insegurança e um quê de ingenuidade aliada à teimosia de achar que o mundo tem que entender tudo o que fazemos.

Um tipo de ambiente que é totalmente interconectado, onde um não pode existir sem o outro. Um tipo de dinâmica de trabalho que, para as novas gerações, virou um estilo de vida e fascina cada vez mais, segundo o próprio Edwards.

Veja também: Esperamos mais das tecnologias do que das pessoas?

Crédito das fotos: EMMEALCUBO, Steve Rhodes, premasagar, divulgação

11 respostas para “Confessionário de um Xoogler”.

  1. Avatar de Demétrio Sobrinho
    Demétrio Sobrinho

    Fiquei curioso de ler esse livro. Muito legal, valeu Tiago.

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  2. Adorei o review.. muito bem escrito e esclarecedor.. o livro já está na fila de aquisições.. abs!

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  3. […] Tiago Dória escrever um post bem legal sobre o livro “I’m Feeling Lucky“, de Douglas Edwards, […]

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  4. A análise também me deixou com muita vontade de ler o livro! E não lembrava dessa história do Google x 11 de Setembro, muito bacana. Valeu a dica 🙂

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  5. Acabei de comprar. Procurei na Amazon por Xoogler (o q evidentemente não trouxe resultados :). Li as duas primeiras páginas no trampo ainda – em que ele descreve momento em que quis se reaproximar do Larry Page. Parece ter ritmo eletrizante 🙂

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  6. Caro, parabéns. Esse artigo é fiel a sua competência.

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  7. […] de uma empresa de telecom e da visão de Larry Page a respeito da Google se transformar em uma empresa verticalizada de comunicação, que forneça não somente serviços, mas também […]

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  8. […] histórico da empresa, é meio difícil imaginar que a Google tenha entrado no negócio de plataformas de redes sociais […]

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  9. […] I’m Feeling Lucky: The Confessions of Google Employee Number 59, de Douglas Edwards (432 páginas/Editora HMH). De um ex-funcionário da Google saiu um dos […]

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  10. […] livro Google Employee Number 59, Douglas Edwards, um dos primeiros funcionários da empresa de busca, sublinha que, internamente, […]

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