Gordon Bell, 75 anos, é um dos pioneiros da computação. Para ele, o fato de não nos preocuparmos mais em memorizar números de telefone (o celular lembra deles para a gente) é um exemplo do quanto estamos “terceirizando” a nossa memória.
Sem perceber, a cada dia estamos tentando “expandi-la.
Sites de compartilhamento como Flickr, nossos arquivos de emails e históricos de navegação acabam se tornando parte dessa nossa tentativa de expandir a capacidade de nossa memória. O que é natural e humano.
Muito do desenvolvimento humano sempre teve como base uma constante busca por uma memória expandida. Em parte, a invenção da escrita surgiu para suprir as limitações da biomemória. Escrevemos para guardar coisas, para certificarmos que não vamos nos esquecer.
Isso abre espaço para uma das propensões naturais do ser humano, que é gravar a vida. Em grande parte, tiramos fotos e fazemos vídeos não por que “queremos ser cidadãos-jornalistas”, mas por que desejamos registrar um momento, para não esquecê-lo e podermos revê-lo quando e onde quisermos.
O diferencial é que, na última década, houve uma explosão desse processo graças ao crescente barateamento das tecnologias de captar, armazenar e recuperar informações. Nunca registramos tantos momentos das nossas vidas como hoje em dia.
Um celular equipado com câmera de vídeo e foto, integrado a um site de compartilhamento de imagens, abre caminho para que possamos registrar todos os momentos de nossas vidas. E ainda recuperá-los a qualquer momento, bastando digitar uma palavra-chave no campo de busca.
Enfim, ficou muito fácil captar, armazenar e recuperar informação pessoal. No entanto, essa facilidade gera questões. Qual será o efeito a longo prazo de digitalizarmos a nossa vida? E de delegar a nossa memória a terceiros, no caso, computadores e programas que lembram desde uma data de aniversário até aquela primeira longa conversa que tivemos com uma pessoa no MSN?
Ficaremos mais preguiçosos? Ou serão abertos novos horizontes ao podermos recuperar facilmente cada momento das nossas vidas? Estamos criando uma imortalidade digital?
É essa angústia sobre os efeitos da digitalização em nossas vidas que move o livro Total Recall – O futuro da memória (256 páginas/Editora Elsevier), escrito por Gordon em parceria com o seu colega de pesquisa na Microsoft Jim Gemmell.
Gordon e Gemmell são os pais do projeto/sistema MyLifeBits, do Microsoft Research, que leva ao extremo a ideia de fazer o registro digital da vida de uma pessoa. No caso, Gordon foi a própria cobaia para o seu experimento. Desde 2001, ele capta digitalmente cada minuto de sua vida. Registra tudo o que vê, lê, come, sente. Digitaliza desde entradas para shows e lembranças da infância até quadros em sua sala e nomes de colegas. Guarda tudo em servidores.
Para isso, ele utiliza desde um smartphone até a Sensecam (foto ao lado), microcâmera que, presa ao pescoço, é capaz de tirar automaticamente 200 fotos por hora (uma câmera que captura a vida “em tempo real”). Gordon fotografa todos os lugares por onde passa. Uma espécie de Big Brother dele mesmo, um autodocumentário.
Em 2007, ele já tinha 101.000 emails, 15.000 arquivos do Word e 99.000 páginas da web, além de 44.000 imagens digitalizadas. O cientista armazena tudo de forma estruturada, com tags e chaves de relacionamentos, para depois facilitar a recuperação desses dados e, assim, poder aproveitar melhor o potencial de toda informação.
Gordon batizou de lifelogging a atividade de registrar todos os detalhes de sua vida. E Memória Total a capacidade de recuperar tudo o que foi registrado. Ou seja, uma memória completa e artifical capaz de recuperar cada momento de sua vida. Basta fazer uma busca na interface do sistema MyLifeBits.
Ele registra para depois poder lembrar a hora que quiser. Quer mais informações sobre um ex-colega de trabalho que não via há tempos? Basta fazer uma busca e todas as memórias relacionadas a essa pessoa serão recuperadas, a última vez que conversaram no messenger, o que comiam no almoço no refeitório da empresa, como se conheceram. Tudo isso acompanhado de fotos, vídeos e áudio.
A priori, o MyLifeBits parece uma ideia que saiu direto de um filme de ficção científica. Ter toda a vida digitalizada e nenhum horizonte de esquecimento.
Para os dois pesquisadores, essa “memória perfeita” seria positiva. Uma união impecável entre homem e máquina. Teríamos um conhecimento muito maior sobre nós mesmos. Poderíamos metrificar e quantificar de forma precisa o ser humano.
Mudaria a forma como nós compartilhamos as nossas experiências com outras gerações; no ensino, nos preocuparíamos mais em compreender do que decorar. E a forma como administramos a nossa saúde também seria diferente – teríamos dados precisos sobre o nosso corpo. Ao analisar nosso histórico, no trabalho, poderíamos ser mais produtivos ao descobrirmos com o que perdemos tempo.
De início, a ideia do MyLifeBits é difícil de ser aceita plenamente. Gordon admite isso no meio do livro. Primeiro, para ela ser aplicada comercialmente (desejo dos dois pesquisadores), é necessário que captemos cada momento das nossas vidas, independentemente dele ser banal, comprometedor ou ruim.
Para Gordon, isso não seria um problema imediato. O processo de registro digital de nossas vidas já teria começado há anos. Naturalmente, no dia-a-dia, colocamos a nossa vida na web ao utilizarmos ferramentas como Twitter, blogs e sites de compartilhamento de fotos.
Mesmo assim, ainda há as questões de privacidade e jurídica. E mais – os problemas técnicos.
Temos boas tecnologias de captação, mas poucas de recuperação. É mais fácil salvar um arquivo do que recuperá-lo no computador. Ou seja, ainda não conseguimos “manter achadas as coisas achadas” (frase do cientista William Jones, da Universidade de Washington).
Outra questão, e que é mais frustante. Cada vez mais as comunicações acontecem dentro de sites de relacionamentos como Orkut e Facebook, ambientes onde você não pode salvar ou exportar os seus dados. Ou seja, conversas ficariam de fora do seu arquivo digital, de sua Memória Total.
Mas Gordon consegue ser bem mais prático quando mostra o conceito do MyLifeBits aplicado à administração de nossa saúde. Na área de medicina, o conceito de montar um grande banco de dados sobre a nossa vida soa menos estranho.
Sensores em roupas e pisos captariam 24 horas o desempenho de nossa saúde.
Teríamos um histórico digitalizado de nossas consultas e prontuários médicos desde quando nascemos. Poderíamos realizar data mining nesses dados e, assim, poder descobrir tendências e padrões em nossa saúde que antes não eram perceptíveis, enquanto essas informações não estavam digitalizadas e relacionadas em bancos de dados.
As consultas médicas seriam minuciosas e, principalmente, mais precisas. Não seriam com perguntas e respostas vagas do tipo “sinto uma dor de vez em quando”. Com base no que os sensores detectaram, um relatório mostraria o dia e a hora exata quando você sentiu dor.
Sem contar o ponto de vista prático, de qualquer lugar seria possível acessar todas informações sobre a nossa saúde. Caso estivesse em outro país, com outro idioma, essas informações já seriam visualizadas traduzidas para os médicos locais.
Ou ainda, de forma anônima (sem associar o dado a pessoa), essas informações poderiam ser utilizadas por organizações internacionais na previsão e no monitoramento de doenças.
Em parte, a Google já faz isso. A empresa é capaz de monitorar o alcance de uma gripe observando quando as pessoas procuram por palavras como “gripe”, “sintoma de gripe”, “tosse” etc. Dessa forma, a empresa é capaz de advertir, com 10 dias de antecedência, a disseminação de uma gripe.
Oficialmente, a Microsoft optou por não lançar uma versão comercial do MyLifeBits (lifelogging), que seria uma suíte de ferramentas para captação e recuperação de grandes quantidades de informação pessoal. Porém, Gordon continua o registro digital de sua vida.
Num contexto maior, Total Recall é um livro sobre a digitalização de quase tudo. É uma visão sobre como será o nosso futuro, em que quase nada escapará de ser digitalizado e armazenado em banco de dados ou nas “nuvens” (cloud computing).
Neste sentido, a mensagem é clara. Dados e informacões digitalizados são mais maleáveis. Mais fáceis de serem salvos e principalmente recuperados.
O que abre espaço para um dos grandes desafios a respeito da digitalização. A questão hoje não é tanto captar, mas como recuperar de forma inteligente e útil as informações que temos digitalizadas.
Adianta muito pouco termos tantas informações digitais armazenadas em servidores e banco de dados se não conseguimos recuperá-las e visualizá-las de tal forma que faça sentido prático em nosso dia-a-dia. Será que os sites de notícias já perceberam isso?
E quando pudermos recuperá-las, de qualquer lugar e de forma intuitiva, quais serão os seus efeitos a longo prazo? Para Gordon Bell, o primeiro homem a construir uma imortalidade digital, essa é uma das questões-chave que mostra o quanto estamos começando a desbravar um território inteiramente novo.
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Crédito das fotos: Killbox, Doistrakh, divulgação e Grobleto.




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