Intrigas de Estado é um filme tributo

Online versus impresso

A primeira coisa que chamou a minha atenção ao assistir a Intrigas de Estado, que estreou neste final de semana no Brasil, foi a ambientação, roupas, cenários e trejeitos, resultado de uma consultoria minuciosa prestada por profissionais da área de jornalismo.

Entre eles, o jornalista R.B. Brenner, editor de cidades do Washington Post, jornal que serve de inspiração ao fictício Washington Globe, onde se ambienta boa parte do filme. Brenner deu várias dicas aos produtores e ao diretor do filme (Kevin Macdonald), sobre como jornalistas se vestem, quais são os jargões utilizados e as posturas na área.

Como resultado dessa consultoria, o jornalista do impresso, da versão impressa do Washington Globe (Russell Crowe), veterano, é retratado como uma pessoa com ar de cansaço constante, barrigudo, cabeludo, que gosta de beber e trabalha num computador velho em uma mesa repleta de recortes de jornais antigos. Mal sabe quem escreve, trabalha ou o que é publicado na versão online, no site do jornal. Aliás, trata com um certo desdém a versão online e os blogs.

Rachel Adams

Por sua vez, a jornalista/blogueira (Rachel McAdams) é quase um contraponto. Tem um visual mais suave, se veste bem, trabalha num computador novo, numa mesa arrumada, sabe o que acontece em todo o jornal, é mais acostumada a fazer pesquisas apoiadas no computador, porém peca pela falta de experiência.

Na realidade, os dois trabalham de formas diferentes, enquanto o personagem de Crowe espera pegar uma informação e trabalhar mais em cima dela, cultiva fontes, a personagem de McAdams já quer publicar toda a informação que apura, tem pressa, vê o jornal mais como um processo do que um produto com começo, meio e fim.

Por isso, eu não vejo a relação deles tanto como um conflito “impresso versus online”, mas entre escolas diferentes do jornalismo. O filme é mais sobre “gerações do jornalismo” do que sobre “jornal versus online” ou “jornalistas versus blogueiros”. Tanto que, na maioria dos momentos, a relação entre os dois personagens é mais de mestre e aprendiz.

O que percebe-se é que da metade do filme para frente, o que une os dois é a mesma coisa, a busca por uma boa história e o que seja mais próximo da verdade.  Talvez numa mensagem clara de que o básico do jornalismo continua, de geração a geração, não importa o meio, as tecnologias e a época.

Crowe

O filme dá uma lição boa e outra ruim de gestão no jornalismo. A boa é que mostra que as equipes do impresso e da versão online devem trabalhar juntas. Sempre. Logisticamente faz sentido.

A ruim é que a editora (Helen Mirren) ignora o online na hora de publicar a matéria sobre o caso. Enquanto que um editor mais atento teria dado uma edição multimídia ao caso (o filme se passa no mercado dos EUA e o Washington Globe seria o equivalente ao Washington Post).

Com tantas nuances, materiais, documentos e personagens envolvidos teria optado pelo uso de infográficos interativos, vídeos, linhas do tempo para ajudar a contextualizar e tornar mais inteligível o caso ao leitor. Enfim, teria publicado no online a história.

De curiosidade – as alusões ao caso Watergate são constantes, o blog Gawker (ou um alusivo) é mostrado de relance em um dado momento e os celulares N95, aqueles “voltados para jornalistas”, tornam-se figurantes de várias cenas em que a blogueira aparece.

Ademais, existe uma brincadeira sutil no fato da blogueira nunca ter canetas, já que ela sempre trabalha na frente do computador, sempre faz as suas anotações no computador, em seu laptop.

Hellen Mirren

Apesar do diretor explorar esses aspectos “impresso versus online” e as diferenças entre “gerações do jornalismo”, acredito que a questão principal levantada pelo filme é bem mais profunda.

É sobre o conflito de interesses no jornalismo, sobre um jornalista cobrir um assunto em que o seu amigo está diretamente envolvido, além dos eternos relacionamentos, todos tênues e tensos, entre políticos e jornais, entre polícia e jornalistas, entre fontes e jornalistas. Onde um acaba usando o outro.

Questão que, diga-se de passagem, não é exclusiva dos que trabalham no meio impresso, também existe nos meios digitais e entre autores de blogs.

Não acho que Intrigas de Estado seja um conto de fadas (apesar de mostrar um tipo cada vez mais raro no mercado, o “jornalista herói”), talvez seja um dos que melhor retratam o momento atual dos jornais impressos nos EUA.

Um tributo ao meio impresso, o que fica bem evidente na sequência final, quando todo o processo de impressão de um jornal, nas máquinas, é exibido. Cenas que mesmo hoje já prometem ser datadas aos olhos do público.

14 respostas para “Intrigas de Estado é um filme tributo”.

  1. Gostei do post, me deu muita vontade de ver o filme. Ótima análise.

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    1. @Izabella

      Obrigado. Sendo jornalista ou não, é um ótimo filme.

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  2. Ótima análise, Tiago. Esclareceu bem os aspectos ligados à profissão.
    Tinha achado inverossímil o final da história. Me parecera uma solução fácil para fugir da
    questão de fato, atual, ligada à era Bush.
    Agora, entendi a intenção do diretor.

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    1. @marcus fidelis

      Obrigado, Marcus.
      Sim, existe essa questão da crítica à Era Bush que é bem presente no filme, mas acho que o aspecto do jornalismo acabou se sobressaindo mais.

      abs

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  3. Ontem na CBN Clovis Rossi participava de uma discussão / debate sobre jornalismo impresso x jornalismo online. A frase dele foi simples, mas genial: “Quem tem que se preocupar se o jornal impresso vai acabar ou não é o meu patrão. Eu continuarei fazendo o que sempre fiz: contar histórias. Vou para as ruas, coleto informações e escrevo. Se querem publicar no papel ou no site, não é um problema meu. O que faço é maior e mais durável do que minha própria existência”. Claro que a ‘linguagem’ para internet é diferente, mais rápida, etc, mas ele tem razão. Jornalista continua sendo jornalista. É pauta para muita discussão, mas essa ‘constatação’ do Rossi dá uma acalmada nos ânimos.

    Abs e boa resenha!

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  4. Avatar de josé carlos de souza. (souza)
    josé carlos de souza. (souza)

    Os modernos defendem em o jornalismo on-line. Os mais antigos o jornalismo impresso. Eu por exemplo digo que gosto dos dois modos, desde que tenha informações atuais.
    Mesmo assim já foi dito que nada substitui a informação impressa.

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  5. O mais interessante é a coincidência com o atual contexto dessa disputa blogueiros vs jornalistas aqui no Brasil; principalmente após o STF por fim à exigência de diploma de jornalista!

    @aleksandre

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    1. @Lex Aleksandre

      Pois é, essa discussão “blogueiros vs jornalistas” promete ficar mais sem sentido ainda.

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  6. […] uma crítica do filme em relação à blogs, tecnologia e a crise do jornalismo, leia primeiro o que o Tiago Dória escreveu. Já destaco uma frase dele para antecipar o objetivo inegável do […]

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  7. Ótimo post. Só não entendi o que o Marcelino Freire está fazendo no filme… Não é ele não?

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    1. @Sergio Leo

      Parece, né? Hehehe

      abs

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  8. Assisti o filme ontem, nao lembrava do teu post, mas imaginei que tivesse escrito a respeito.

    Achei a história muito boa, bem amarrada. Assisti junto com meu irmao, que é jornalista e comentamos várias coisas enquanto assistíamos, ele inclusive explicou a piada da blogueira nao ter canetas, que nao percebi na hora.

    Uma ou outra coisa não fez sentido, mas acontece.

    Ótima resenha, Tiago.

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    1. @Camilo Oliveira

      Obrigado, Camilo.

      abs

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  9. […] Veja também: Intrigas de Estado é um filme tributo […]

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